1976!
Foi há 40 anos que aconteceu um dos episódios considerado pelos enófilos como um dos mais emblemáticos do mundo dos vinhos e que ainda hoje é recordado. Foi a Degustação de Paris de 1976, que ficou para a história com o nome de O Julgamento de Paris.
Vamos contar essa história mas na perspectiva do Blogue do Syrah, o que equivale a dizer que vamos levantar algumas “lebres” nunca antes levantadas. Porque foi sem dúvida uma degustação histórica que se tornou um marco para a indústria do vinho na Califórnia e abriu espaço para os vinhos do Novo Mundo.
O Museu Nacional de História Americana Smithsonian abriga na sua colecção duas célebres garrafas de vinhos: os vencedores da degustação às cegas de Paris!
Um Stag’s Leap Wine Cellars Cabernet Suvingnon, de 1973, para os tintos e um Chateau Montela Chardonnay, de 1973, para os brancos. Especialistas franceses elegeram esses dois vinhos como os melhores, superando os mais famosos vinhos franceses. Tal resultado teve grande impacto sobre o mundo do vinho e ampliou as suas barreiras, antes confinadas aos limites da França, alcançando regiões como a Austrália a América do Sul e naturalmente a América do Norte.
Mas apresentemos os factos, ou seja, a história tal e qual como ela aconteceu.
Em 24 de Maio de 1976, uma degustação de vinhos em Paris mudou para sempre a visão do mundo sobre os vinhos da Califórnia. A degustação foi organizada por Steven Spurrier, um inglês comerciante de vinho que era dono de uma loja e de uma escola de vinhos no centro de Paris. Localizada perto dos escritórios da IBM, muitos dos estudantes da L’Academie du Vin eram norte-americanos que trabalhavam na França.
Spurrier ficou intrigado com alguns dos Cabernets e Chardonnays da Califórnia que os seus alunos traziam à loja. Curioso para ver como esses recém-chegados se sairiam contra os vinhos franceses feitos a partir do mesmo tipo de uva, organizou uma degustação às cegas em comemoração das actividades do Bicentenário Americano em Paris. Os jurados franceses escolhidos para o evento tinham credenciais profissionais impecáveis. Foram feitas duas degustações às cegas: a primeira com Chardonnays da mais alta categoria e a segunda com vinhos tintos Cabernet Sauvignon.
Foram escolhidos o melhor da França: Château Mouton-Rothschild como um dos Cabernets, e o Puligny-Montrachet Les Pucelles da Domaine Leflaive’s nos Chardonnays. Ninguém jamais acusou Spurrier de ter sido tendencioso na escolha dos franceses.
A degustação aconteceu num hotel no centro de Paris, onde foram reunidos 6 dos melhores rótulos de Napa Valley para cada tipologia (branco Chardonnay e tinto Cabernet Sauvignon) e para os Franceses foram escolhidos quatro vinhos tintos de Bordeaux e quatro vinhos brancos da Bourgogne. Os jurados estavam entre os melhores degustadores da França: “ la créme de la créme”!
Spurrier escolheu os melhores, incluindo o co-proprietário do Domaine de la Romanée-Conti, Aubert de Villaine, e sommeliers de restaurantes três estrelas como Tour d’Argent e Taillevent. Havia apenas uma mulher no júri: Odette Kahn, editora da revista La Revue du Vin de France, a mais famosa publicação francesa sobe vinhos ainda hoje no activo.
A ordem dos vinhos foi entregue ao correspondente da revista TIME em Paris, George Taber. Foi o único jornalista que aceitou cobrir o evento pois todos os outros que foram convidados recusaram estar presentes.
Os vinhos brancos foram degustados em primeiro lugar que como se sabe é uma espécie de regra nas competições de vinho. E o impensável e improvável aconteceu. Na categoria de vinhos brancos o Chateau Montelena Chardonnay 1973 da Califórnia superou os homólogos franceses. Os jurados franceses ficaram muito surpresos. Como poderiam vinhos excepcionais virem de outro lugar que não do legítimo terroir francês?
Segundo o relato do jornalista presente, a segunda parte da degustação, com os vinhos tintos foi bem diferente. Os jurados estavam agitados, estavam conversadores e pareciam confusos. Os juízes de um lado da mesa diziam ter certeza que tinham provado um vinho francês, enquanto o outro lado jurava que o vinho em questão vinha da Califórnia.
As notas da degustação de vinhos tintos foram um pouco estranhas. O júri dava notas ou muito altas ou muito baixas dependendo da certeza que tinham sobre a origem do vinho.
Quando Spurrier anunciou os resultados da degustação dos tintos, a Califórnia mais uma vez saiu vencedora, o Stag’s Leap Wine Cellars Cabernet Sauvignon 1973 – a primeira colheita produzida com uvas provenientes de vinhas com apenas três anos de idade – foi julgado o melhor. O Cabernet havia superado quatro Bordeaux topo de ranking, incluindo Premier Crus como Château Mouton-Rothschild e Château Haut-Brion.
Tanto na competição de brancos como na de tintos, o Napa Valley ficou com o primeiro lugar. E este foi o Julgamento de Paris.
Recomendamos os nossos leitores a verem o filme cuja portada está no principio deste nosso texto, com a saudoso e enorme Alan Rickman, uma delícia para qualquer amante de Syrah, vinho e não só. Aqui ficam mais algumas versões dessa mesma capa do filme.
E já agora, para que a história fique contada até ao fim, exactamente 30 anos depois destes acontecimentos, no dia 24 de maio de 2006, jurados europeus e americanos, simultaneamente em Napa Valey e em Londres, degustaram exactamente os mesmos vinhos de 30 anos antes. O resultado foi a vitória ainda maior da Califórnia: os cinco vinhos mais bem pontuados eram de Napa Valey. Os vinhos californianos conseguiram passar pelo teste do tempo. Mais uma vez, foi o Julgamento de Paris 30 anos depois!
Eis os vinhos degustados em 1976 e respectivas pontuações:
Vinhos Brancos:
• Chateau Montelena 1973, Napa Valley/Calistoga (132)
• Meursault-Charmes 1973, Roulot (126.5)
• Chalone Vineyards 1974, Monterey County/Soledad (121)
• Spring Mountain 1973, Napa Valley/Spring Mountain (104)
• Beaune Clos des Mouches 1973, Joseph Drouhin (101)
• Freemark Abbey 1972, Napa Valley/Rutherford (100)
• Batard-Montrachet 1973, Ramonet-Prudhon (94)
• Puligny-Montrachet 1972, Les Pucelles, Domaine Leflaive (89)
• Veedercrest 1972, Napa Valley/Mt. Veeder (88)
• David Bruce 1973, Santa Cruz Mts. (42)
Vinhos Tintos:
• Stag’s Leap Wine Cellars 1973, Napa Valley (127.5)
• Château Mouton-Rothschild 1970 (126)
• Château Haut-Brion 1970 (125.5)
• Château Montrose 1970 (122)
• Ridge Cabernet Sauvignon ’Mountain Range’ (Montebello) 1971, Santa Cruz Mts. (105.5)
• Château Leoville-Las-Cases 1971 (97)
• Mayacamas 1971, Napa Valley/Mayacamas Mts. (89.5)
• Clos Du Val 1972, Napa Valley (87.5)
• Heitz Cellars ’Martha’s Vineyard’ 1970, Napa Valley/St. Helena (84.5)
• Freemark Abbey 1969, Napa Valley/Rutherford (78)
E chegamos finalmente à questão principal que nos trouxe aqui hoje: qual o interesse que esta história fascinante, sem dúvida, pode ter para o Blogue do Syrah?
Repare-se que na célebre prova cega de 1976 não esteve um único Syrah, nomeadamente do Vale do Rhône pelo lado francês. Também é verdade que do lado californiano nenhum Syrah esteve presente. Nos tintos a luta foi entre vinhos da casta Cabernet Sauvignon, e isso quer se queira quer não, limita obviamente as extrapolações que se queiram fazer e foram de facto feitas ao longo destes quarenta anos!
Especulemos um pouco: se estivessem presentes na degustação de 1976 vinhos feitos exclusivamente da casta Syrah o resultado teria sido similar? Os vinhos californianos teriam ficado à frente dos vinhos franceses como realmente aconteceu? A Califórnia tinha já na altura Syrah, no entanto estiveram ausentes do embate. A história não pode ser alterada mas pode ser refeita.
Que tal confrontar Syrah português com Syrah internacional?
Talvez isso possa acontecer mais cedo do que se pensa. Quem sabe em breve acontece um novo julgamento de ‘Paris’, eventualmente dando pelo nome de… Julgamento de Lisboa!
Continuem ligados.









